sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Li no insta: "Os finais doem mas os recomeços curam"


Cláudia Rodrigues

A frase pode ser lida de muitas formas, preto & branco e furta-cor.
 Caso 1- Atinge de tal forma o plexo que a pessoa imagina uma queda total de força, blecaute, paranoias de que haverá um desabamento e então encapsula-se ainda mais no não aniquilamento em que já vive. Não há saídas, imaginar finais é imaginar fim da linha, fim da picada, precipício, tsunami, aniquilamento total.
Caso 2- Pode atingir via medo paralisante, não está doente, não há o que curar, fim é sempre ruim, fim lembra separação, perda, foco no que foi, nostalgia, fim é doença, então não há como trocar não doença por cura incerta. Há saídas, mas não parecem seguras, o aperto no peito não vira borboletas na barriga.
Caso 3- Pode cair no modus operandi competitivus, em que recomeços e finais interagem em sincronia e caos conjunto, assim não haveria porque contrapor finais a recomeços, posto que seriam continuidade em crescimento exponencial. A "saída" é uma grande viagem sideral entre o ideal da simbiose, da vida sem dor, de risco calculado e a raiva que vem da necessidade de individuação nata do ser humano.
Real oficial é que na natureza nada se cria, nada se forma...Assim a maçã amadurecerá e inegociavelmente cairá recomeçando do seu total aniquilamento como semente fadada a crescer de si mesma, se transformando ela própria em árvore geradora de frutos.
Todo final de fase, de ciclo, gera criação, transformação e ainda que seja continuidade, aniquila verdades anteriores.


quarta-feira, 28 de março de 2018

Curtições do ninho vazio

Cláudia Rodrigues


Quando filhas e filhos começam a precisar menos dos pais, quando acaba a fase de banhar, acompanhar, providenciar companhia constante via escola ou no tempo deles em casa enquanto se trabalha, além de também estar com as crianças e fazer coisas com elas o tempo quase todo que sobra : -- levar a praças, parques, cinema, banhar, fazer dormir, acordar de madrugada para acudi-las, providenciar comida, material de arte, jogar memória, stop, imagem & ação, desenhar, pintar, cortar unhas, ajudar a vestir e desvestir, acompanhar suas dores de desenvolvimento, febres, vômitos, frustrações, tristezas e alegrias do desenvolvimento -- enfim estamos um pouco mais sós. A dois ou no silêncio da casa, chegamos nós à fase em que os filhos começam a precisar menos e inclusive apreciar nossa ausência em suas vidas.

Se convidamos ou nos oferecemos para ir em suas casas, eles são gentis e amorosos, mas está óbvio que somos apenas seus pais, o local de onde vieram, a base, os ensinamentos, valores que passamos. Eles estão recheados disso internamente e também externamente, se parecem em algumas coisas conosco, alguns trejeitos, enfim, semelhanças genéticas e de comportamento. Não precisam mais tanto disso, qualquer excesso pode fazer mais mal do que bem. E claro, querem se diferenciar, não para nos combater ou criticar, mas para ampliarem seus horizontes com outras influências.

Suas estratégias de sobrevivência e escolhas são próprias e muitas vezes não representam exatamente o que ensinamos ou o que vivemos. Isso está bem, o direito de acertar e errar também já não é da nossa conta. Adolescentes e adultos saudáveis adoram ficar com outras pessoas que não nós, seus pais e mães. Foram muitos anos de aprendizado e oportunidades, podem apreciar estar conosco e escolher alguma porcentagem do seu tempo para isso, mas é natural que ampliem suas conexões de contato com o mundo, via estudo, trabalho, círculos sociais, afetivos e da sexualidade. Hora de se abrirem para o mundo e nossa hora de sair das fraldas do relacionamento infantil com elas e eles.

Uau, isso pode ser muito legal, uma síndrome que dá baratos e amplia nossos direitos também! Não somente porque sobra tempo para fazer o que nos der na telha ou fazer nada, mas porque começa a surgir uma sensação de dever cumprido. É quase como vida de solteira de novo, já que no dia-a-dia não é preciso feijão com arroz diariamente e se pode ir e vir sem ter que avisar ou providenciar alguém para ficar com les petits.

Lamentadores de fases denominaram-na de síndrome do ninho vazio, mas há quem sinta prazer em ver os filhos pela vida, se divertindo, aproveitando, traçando planos e se virando sem nos perguntar o que achamos de cada passo que dão.
Lamentadores de fase podem se fixar no número cronológico da idade e no gasto de olhos, ouvidos, pernas e braços durante os anos anteriores, só para não terem que lidar com o lado ótimo de também ser mais livre. Com a lata que se tem, é claro, com o que sobrou, de preferência sem sugar o sangue das meninas e meninos.
Lamentadores de fase podem iniciar o terrível jogo da comparação para tentar deter por meio da culpa e da chantagem emocional, o desenvolvimento das filhas e filhos adultos, exigindo presença e um certo pagamento por serviços prestados. É uma pena porque amor é coisa que só vale de graça. Uma gota de amor é mais poderosa do que um balde culpa.




Buenas, é hora de viver o presente e aí muitas pessoas se dão conta que podem ter escolhido estar em uma casa muito grande, com muitos quartos, muita mobília e talvez isso precise ser revisto, enxugado, se não estiver mais trazendo satisfações. Podem, é claro, optar por dar continuidade, por conta dos netos que deverão vir ou estão chegando. Podem escolher mudar para um lugar melhor menor, piorzinho e fácil, tanto faz, o importante é focar no presente, afinal, o passado já foi e o futuro é logo ali, mas muito incerto. Tudo bem também com quem continua, aos 50 anos, fazendo grandes planos para os 70, 80 e adiando um pouco mais o foda-se. Cada um que sabe de si e tanto faz se o foco de prazer é cozinhar e cuidar de plantas, arrumar armários, viajar, ler, ir ao cinema, assim de luneta sem ter que providenciar quem fique com as cris; o que importa é focar no próprio prazer.

Se sobrar muito tempo, não há porque ter aflição, filhas e filhos sempre demandam algo e aí, tcharam, não é hora de jogar na cara delas e deles que você esteve só e triste. Foi opcional e jogar a toalha da parentalidade na tentativa de inverter os papéis, é sacanagem. Primeiro porque não é justo que filhas e filhos cuidem de nós porque nós cuidamos deles, o nome disso é cobrança. Segundo porque é um baita recibo de incompetência enquanto ainda não estamos realmente precisando.

Com sorte morreremos sem que eles cuidem de nós, mas pode acontecer de precisarem tomar conta e providências, caso nossa vida espiche para além de nossas capacidades de mobilidade e acuidade mental.

No mais, curtir uma fossa de saudade nunca matou ninguém. É um bom momento para revitalizar o coração de um jeito mais evoluído. Nos primeiros amores, a separação doía tanto que se desejava o sumiço para sempre daqueles que nos partiram o coração. Nessa nova empreita, o amor é tão grande que não cabe em si mesmo. Ao mesmo tempo em que se deseja muito ver a pessoa de perto, estar com ela, comer com ela, vê-la entrando pela porta, saindo toda cheirosa e linda, o coração dá saltos de alegria ao ver a foto desse amor com outros afetos escolhidos por ela.
Tal da fossa bem boa é ficar longos minutos olhando cada detalhe, os cabelos ao vento, o olhar penetrante, aquela boquinha docemente irônica e imaginar que está ganhando mundo com as próprias pernas.

Ah que delícia, você ali com uma taça de vinho na boca para ajudar os olhos a pupilar os melhores desejos cantando baixinho: I Can´t take my eyes of you.


quinta-feira, 8 de março de 2018

Meninas que correm de lobos

Cláudia Rodrigues, 8 de março de 2018

Chapeuzinho vermelho ainda era uma garotinha quando decidiu que estava pronta para ir à floresta. A mãe dela não era do tipo tão melecão; cuidava, dava comida, supervisionava com atenção, mas sem ficar grudada. Além disso não exigia o mais alto padrão de desempenho escolar que não fosse exatamente do tamanho que Chapeuzinho conseguisse por si mesma. A Sra Vermelho era amável e cuidadosa, mas bem livre ela mesma e ocupada de sua vida. Trabalhava, estudava, se divertia com amigos e amigas, assim que orientava e amava a menina, mas acima de tudo confiava na capacidade dela de ser boa o bastante a partir de suas próprias forças. Dona Vermelho brilhava os olhos ao ver sua menina lutando e se divertindo na justa medida que pudesse. E desde o primeiro olhar, ainda no colo, sempre acreditara no poder e na habilidade de Chapéu para dar conta de alguns problemas como frustrações, tristeza, raiva e outros sentimentos não tão bons, com economia de energia, sem muito drama, muita culpa ou muito medo.
Dona Vermelho, além de confiar, adorava a liberdade e compartilhava com a menina.
Assim, no dia em que Chapéu pediu para ir sozinha à casa da avó, a mãe sentou com ela para falar dos dois caminhos, o da floresta e o do bosque, recomendando o bosque, por ser mais aberto e com um banquinho branco e confortável para descansar no meio do caminho, debaixo de uma linda cerejeira.
A Floresta, explicou a mãe, é mais sombria, as árvores são mais altas, há grandes animais, mamíferos, carnívoros e a noite pode ser assustadora.
Chapéu decidiu já secretamente enquanto a mãe palestrava em wiskas sachê, que economizaria o tempo no banquinho branco do bosque e arriscaria a floresta e seus mistérios, assim daria tempo de chegar à casa da avó antes do anoitecer.
Dona vermelho preparou um lanche para Chapéu, enquanto a menina enchia a mochila de utilidades: lanterna, canivete, água, bloco e caneta, que era o equivalente da época aos celulares de hoje.
A avó não estava doente, que sandice! Vovó Vermelho estava muito bem, cuidando da horta, dos animais, lendo, cozinhando, estudando os astros, costurando e estava muito feliz que a neta iria dormir de sábado para domingo com ela.
Um pouco antes do final da tarde Vovó Vermelho saiu de casa com seu cajado duro, de pura embúia, para encontrar a neta. Ao lado dela estava o grande cão Babu, mamífero imenso, ao mesmo tempo doce e feroz. Adiante a porteira do Sr Vivaldino e a natureza imensa, o casal de Tahãs, as emas, as saracuras, os jacarés, javalis e logo adiante, chegando valente com sua mochila vermelha, vinha a pequena notável: Chapeuzinho Vermelho.
A avó sorriu e abraçou a menina. Nesse primeiro momento só falaram de alegrias e depois, sentadas à lareira comendo milho assado, falaram sobre os lobos.
São animais que se assustam com o brilho de uma lanterna, vovó! Joguei uma pedra em um, ele saiu ganindo, gabou-se a menina.
Hummm, murmurou a avó, não é bem assim, minha querida, ouça bem, os piores lobos são os com pele de cordeiro. Esses que saem ganindo são os mais violentos, mas também os menos inteligentes. São capazes de comer de barriga cheia até explodirem, não merecem nem pedra, nem lanterna, nosso dever é eliminá-los ao primeiro olhar. Com força, com poder, acesso blindado.
Os lobos em pele de cordeiro, ah minha neta, esses são mais difíceis de identificar. São mimosos, carinhosos, te conquistam para perto, te deixam segura que não vão te machucar, parecem mesmo te amar e de repente jogam longe a pele de cordeiro e te engolem inteira, com ideias com tudo.
A menina, de olhos imensos e arregalados, perguntou: Vovó,  existe algum lobo bonzinho?
Vovó Vermelho se aproximou do fogo devagar, soprou a brasa e as chamas brilharam incandescentes. Só então falou: Netinha, querida, infelizmente não, mas podem ser domesticados, embora sempre haverá risco de fúrias, é da natureza deles.
Hummm, vovó, mas ainda bem que temos o gato Chucrute, as cabras, macacos e outros bichos mais dóceis, não é mesmo?
Ah sim, minha netinha, existem os cavalos, os gansos, os patos, os elefantes, rinocerontes, porcos, urubus, todos mais inofensivos do que os lobos. E também existem os tigres, leões...
A menina interrompeu a avó: E os dragões, os dragões!
Os dragões não existem, minha netinha, eles são inventados, uma marqueteria. Não se sabe exatamente como podem ser tão imponentes e poderosos, ganhar de todos os outros animais se nem são o que são a não ser na imaginação. E depois ficaram as duas olhando o fogo e esperando a comida ficar pronta.
Chapéu dormiu feliz depois do jantar e na manhã seguinte tomou banho na cachoeira, almoçou com a avó e partiu de volta para casa.
No caminho sentia os lobos que não valem uma lanterna espreitando-a, mas eliminou-os do caminho como a avó havia ensinado.
Quando chegou em casa o pai estava esperando com uma surpresa: um cavalo!
Chapéu se aproximou do alazão, fez um carinho em sua cabeça, montou e saiu no trote, os cabelos voando, as pernas seguras no lombo do bicho, o ar soprando em seu rosto, as rédeas firmes nas mãos, os braços flutuando e os olhos lá longe na vastidão do horizonte.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Buena Leche: Tsunami feminista

Buena Leche: Tsunami feminista

Tsunami feminista

Cláudia Rodrigues  




 
Se foi o tempo da primeira, da segunda, da terceira onda do feminismo. São muitas ondas, a maré subiu e abarca todas.
Vamos brincar de #niunamenos?
Então é assim pessoal, se as mulheres da Igreja resolvem vender panos de pratos e se dizem feministas, elas são porque são mulheres.
Se a Deneuve se junta com outras senhoras e lança um manifesto para descriminalizar o assédio porque veem nisso um retrocesso moralista, elas são feministas, porque são mulheres, não por terem ou não razão.
Oprah Winfrey conseguiu na última semana juntar quase uma unanimidade de mulheres a ouvi-la? Melhor, perfeito, mas sempre lembrando que o importante é a junção, não a razão.
Se existe feminismo pré parto humanizado e doméstico, existe feminismo nas mulheres que se juntam pelo direito de ter cesariana, apenas porque são mulheres, não por terem ou não razão.
Existe feminismo na micropolítica, dentro de casa, na família e na macropolítica, o feminismo maior, político, acadêmico, jurídico, internacional e ideológico. Há as que sobreacoplam ambos, as que os grudam simbioticamente e as que separam mais ou menos e todas são feministas, porque são mulheres falando de suas dores de opressão e liberdade atávicas, não por terem ou não razão.
Existe feminismo com maternidade consciente e inconsciente, feminismo pela não maternidade e até feminismo free kids porque se tem mulher se juntando por direitos e por cura de machucados ancestrais, tem feminismo. Juntou quatro manas na esquina para falar das coincidências dolorosas da vida histórica de opressão, é feminismo, é evolução, não por terem ou não razão.
Se as manas odeiam machos está bem, tem feminismo, se não odeiam, se não vivem sem, está bem também, se não odeiam nem amam, não importa, os homens não são o centro da questão.
O feminismo está passando na sua casa, subiu o morro, a torre, o predinho, o pátio, está na boca das adolês, está no funk, na prosa e no verso, está na música, na arte e não tem só meia dúzia de corpos definidos ou de verdade única, não há consenso, só a diversidade de todas as manas de todas as idades, credo e cor sem ofensa, sem essa de eu é que sei, sem essa de ordem de chegada.

Niunamenos tem que ser de verdade, de coração aberto. 

E sim,  com amor e sem culpa, feministo não entra no clubão.












segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

La muerte en la vida



Para Cássia Eller, Francisco Alfaya e Lau Baptista, que voaram pela vida sem temer a morte

Cláudia Rodrigues, 11 de dezembro de 2017.




Nosso medo da morte produz comportamentos bem estranhos. Medo de ser, arriscar, contestar, andar sob a própria batuta; assim vamos, em menor ou maior intensidade. Costumamos confiar nossas vidas aos medos de nossos pais. Começamos mal nessa relação, começamos mais na morte do que na vida.
O primeiro pulo e alguém grita: cuidado!
Volta aqui, vai se afogar!
Vai cair!
A cada prazer um aviso de morte.
Assim que se você teve um pai e uma mãe que não te colocaram tanto medo de viver, parabéns, você começou bem a sua trilha de vida, que vai acabar em morte, inexoravelmente.
Faça ioga, se quiser. E não beba e se exercite, faça os exames que bem entender, filie-se ao convênio que achar melhor, use argumentos do tipo “não quero envelhecer mal e adoecer, dar trabalho para os outros”, use a desculpa que quiser, mas nunca, jamais, diga que alguém morreu porque não se cuidou ou porque teve uma vida devassa, porque não soube ter sucesso financeiro, porque fez sexo demais, porque não ganhou estrelinhas de bom comportamento da professora, como você.
Não diga que alguém morreu porque bebeu demais, fumou demais, desrespeitou regras demais, comeu demais, amou demais, viveu demais.
Se é demais para você viver assim, morrer assim, então apenas viva o seu jeito de morrer porque todos nós temos um jeito de morrer, uma hora que escolhemos secretamente, internamente e ela tem tudo a ver com o jeito que vivemos. Se é melhor morrer aos 60 do que aos 80, aos 10 ou aos 50, essa é uma coisa que seu corpo decide com você secretamente e tanto faz em que lugar da estatística você ficou.
Aliás, expectativa de vida como um dado estatístico deveria servir para nos acalmar enquanto vivemos bem o bastante, ela é uma realidade tão palpável quanto os pontos fora da curva. Não tem lugar seguro, “para morrer basta estar vivo”.
Quando alguma estatística serve para enervar a pessoa em prevenções num desespero coletivo de exames que confirmem saúde perfeita está bem também, assim como devemos respeitar quem escolhe só se observar e deixar acontecer, secretamente.
O seu joelho pode ranger e você lidar com isso por 30 anos até morrer de uma topada na esquina sem nem sentir dor no joelho, bem antes de procurar um médico especialista em joelho e pronto. Isso pode parecer uma insanidade para quem gosta de monitorar o corpo pelo menos uma vez por ano, mas existe, é fato, pessoas assim existem e elas têm direito de viver e morrer do seu jeito, sem tanto medo da morte.
O medo da morte pode nos fazer monitorar a vida, isso está bem, mas cada um monitore a sua. A vida dos outros e a morte dos outros não nos diz respeito nesse sentido. A única coisa que temos direito é sofrer do nosso jeito, bem quietinhos, a tristeza de não poder mais ver alguém, ouvir alguém, estar com alguém que amamos. Sem julgamentos.
Que fiquem bem os que fazem força para não envelhecer e retardar a morte, benditos sejam, que consigam adiar se assim acreditam e podem. Benditas sejam também todas as pessoas que nascem voando e voam rumo ao fim, dando à vida a oportunidade de encontrar seu fim livremente.

sábado, 28 de janeiro de 2017

Regras de beleza e saúde para 50 ou mais

Cláudia Rodrigues



Se você completou 50 anos ou está se aproximando de meio século de vida, é provável que já precise usar óculos para ver de perto, então essa é nossa primeira dica.

Use óculos apenas para ler, evite o uso diante do espelho ou para espiar sua pele. Resista à tentação de achar uma manchinha nova, uma ruga a mais.
Sem óculos para perto suas sobrancelhas estarão sempre perfeitas, assim como suas unhas e a cútis.
Pequenas imperfeições não podem ser vistas por você, que é quem interessa.  Então, logo pela manhã escove bem seus dentes e dê um largo sorriso, eles estarão limpos e perfeitamente sem manchas.

Depois de tantos anos é óbvio que você já aprendeu a sentir o contorno de sua boca para passar um batom, então brinque de surpreender suas filhas, netas e afilhadas mostrando como é passar um batom sem olhar no espelho. Se você nunca foi adepta do batom, não precisa entrar nessa agora, ninguém é obrigada.

Nunca chame seus cabelos prateados de brancos, essa cor racista, demodé e sem brilho que definitivamente não denomina a coloração adquirida pelos seus novos cabelos. Não arrisque maquiagens e cabelos muito elaboradas, mesmo sob a lente de seus óculos para perto, isso pode ser bastante cansativo para seus braços e aumentaria a exposição, de óculos, ao espelho, o que é absolutamente não recomendável. O triceps acaba, não importa quantas horas de academia você faça. A menos que você seja uma atleta e ame malhar, a vida está aí para ser vivida com triceps ou sem triceps.

Se para você a maquiagem é um item indispensável, lembre-se que o efeito esfumado nunca caiu de moda, está tão presente hoje quanto no passado, em cenas inesquecíveis do cinema, como no rosto de Jackeline Bisset no filme O Magnata Grego, de 1978. Delineadores e batons líquidos deixe para suas filhas e netas, você não tem tempo a perder com nano detalhes; dê um tapa no visual no melhor estilo foto fora de foco e siga em frente. Na dúvida, ganhe a porta da rua e evite o espelho mais próximo.

Aproveite que ainda pode andar de bicicleta, nadar, pegar uma onda, caminhar e até dar uma corridinha e vá se divertir com o corpo no tempo que resta. Não é muito, acredite, então não sobra tanto para a sofrência a favor da aparência. Ela já não está grande coisa mesmo, a redução de danos é mais crença e genética do que fato comprovado. Tudo tende a piorar e a cada ano que você não tiver ou superar uma bursite, é um tremendo lucro.

Acredite, com um salto 15 aos 30 anos, é possível driblar as pernas, a expressão de dor e sorrir; aos 50 você se sentirá vítima de tortura e já não conseguirá pisar firme, muito menos evitar a cara de dor. Tente descer dos saltos mais altos e perceba como se sente. O seu tamanho é um bom tamanho, não há mais como crescer, perca essa ilusão ao mesmo tempo em que estica os músculos da parte posterior das pernas, os responsáveis pelo autoconhecimento. Bancando a mulher fatal aos 50 o máximo que pode acontecer é você arranjar um picareta para secar sua conta bancária. Nenhuma mulher madura que se sustenta e pode viajar pelo mundo solita depois de tanta luta, merece ser vítima do vale-tudo por amor. Se você não encontrou um par para sua alma e ainda deseja um, invista na alma, não na aparência; o par vai aparecer.

Beba água porque beber água é importante, mas não precisa andar com uma garrafinha de "hidratação" o dia inteiro feito as balzaquianas desesperadas para não parecerem que já estão com quase 40. Você já passou dessas fases, querida amiga e evitar água demais vai poupá-la de levantar três vezes à noite para ir ao banheiro descarregar o excesso de "hidratação" do dia.

Os sites de beleza costumam avisá-la que seus hormônios estão em queda livre e por isso você sentirá calorões, ressecamento vaginal, mau humor, sangramentos intensos e deve tomar hormônios sintéticos e mil e um remédios milagrosos. Elixir da juventude ainda hoje só existe em conto de fadas.
A boa notícia é que os calorões surgem sob o mais potente dos splits, mas acabam com sete ou oito abanadas de leque porque são localizados, especialmente no rosto. O leque é o melhor amigo da mulher de 50 anos ou mais. Distribua leques pela casa e no seu local de trabalho, carregue um na bolsa e voilá, tome posse do seu refrescamento no rosto que em 2 minutos tudo volta ao normal como num passe de mágica. Sem leque volta também nos mesmos 2 minutos, mas a sensação é mais intensa.



Para o ressecamento vaginal você pode tentar assistir alguma série como Outlander, por exemplo, antes de buscar atividade sexual. Mas se  você nunca fez a linha romântica e sexo para você sempre foi na veia, tente filmes pornográficos femininos como o Lust Cinema ou Dane Jones. Caso os sintomas persistam, o que é mais comum nas mulheres que sempre tiveram problemas para "molhar", você já deve ter lançado mão dos mil e um óleos existentes para o fim. Sem dramas.

Aceite se você não fizer o estilo Suzana Vieira Papa Todos os Mocinhos. Acontece, como tudo na vida, do sexo não ser mais o seu programa favorito. A fase aquela em que dez dias sem sexo te deixava com vontade de subir no primeiro poste no meio da rua já foi. Tudo tem seu lado bom. Agora quando você sai com as amigas e amigos não é mais para caçar mocinhos, mas para rir à toa porque a vida é breve.



Os sangramentos intensos podem apavorar, é mesmo bem mais do que menstruações intensas dos 30 anos, mas comendo bem e descansando durante o tempo em que eles resolvem te sacrificar, eles somem, assim como vêm, vão e dão lugar a parada geral. É a despedida, despeça-se, fique louca com eles, calcule o quanto gasta de absorventes noturnos, use e abuse do Netflix que o tempo do recesso vem para ficar e você nunca mais terá que lidar com uma gota só do sagrado sangue. É pauleira, mas passa, do mesmo jeito que passaram os seios cheios de leite e as noites mal dormidas pelos nenéns. Não esqueça de doar os absorventes que você comprou baseada nos cálculos anteriores.

O mau humor pode ser a melhor das desculpas para você finalmente enfrentar aquela ida adiada desde os 30 a uma boa terapeuta, afinal você não tem mais tantos anos para ficar de mal com essa vida, antes que ela se vá. Comece falando disso mesmo, assim de cara, no primeiro dia e em seis meses é possível que você já esteja melhor. Mau humor constante é um problema de geografia interior quase fácil de resolver e não se deve confundir com depressão, problema mais grave.

Finalmente reflita que seus problemas aos 13 anos eram enormes aos 13 anos e te pareceram bizarros aos 25, os de 25 foram solucionados aos 30, teve a fase, para quem procriou, dos filhos, dos partos, da amamentação ou da resolução disso tudo para quem não embarcou nessa. Quando foi que alguma fase de sua vida foi fácil? E quanto custou ao longo delas o drama contra cada uma?

A diferença é que agora você já passou da metade da sua vida, na melhor das hipóteses, assim está mais do que na hora de dar o máximo de si para buscar contentamentos reais, internos, seus com você mesma com o corpo que tem nas condições que têm.

Os sites de beleza recomendam que você use roupas que convém ao seu (sic) corpo, vestidinhos mais compridos, meia manga, bermudas, mas isso é conselho das adoradoras de espelhos. Resista bravamente, ninguém é obrigada a andar de meia manga e vestido longo num calor de 40ºC para ir ao parque andar de bicicleta só para esconder estrias, celulites, varizes, idade, você!



Com cinquenta anos e além você pode usar short, mini-saia, blusas de alcinha, ser chinelona, descabelada, exibir suas tatuagens no corpo enrugado, ser o que você quiser. Velhas têm licença poética para comportamentos livres como nunca antes.

Você também pode continuar a seguir os padrões referentes à idade e as recomendações conservadoras como sempre fez, investindo horas e horas nos salões e spas de rejuvelhecimento para ser um cadáver mais bonitinho em futuro próximo, do mesmo jeito que fez a vida inteira tentando adequar o tamanho dos seus seios, a crespura ou lisura do seu cabelo a fim de parecer a moça padrão da sua época. It´s up to you.






domingo, 8 de janeiro de 2017

Carta do futuro


 Cláudia Rodrigues



Para quem está às voltas querendo um tempo dos seus bebês, crianças, adolês e jovens.

Eles viram adultos e você vai ter que aprender a lidar com a saudade dos seus grudadinhos. E lidar bem pode não ser tão fácil, eles podem se sentir ofendidos e com razão a respeito de invasões e proteção de espaços exclusivos.
Pior, eles serão capazes de levar o seus mais novos e mais potentes amigos genéticos, seus netos, para longe de você por dias, semanas, meses e até anos ou para sempre, como é o caso de migrantes.

Há quem possa viajar para visitar os seus ou recebê-los em visita, há quem não possa. Há relacionamentos distanciados que foram fundados e sedimentados assim por razões muitas e sentimentos involuntários, condicionados ou congelados.

Há quem consiga viver em paz com a presença e a ausência dos filhos adultos sem maiores dramas. O mundo está cheio de tragédias, as irreparáveis, para além das nossas mazelas na labuta familiar.

Amar mais profundamente com disposição emocional para doar tempo, compartilhar e ajudar as crianças a irem ficando cada vez mais autônomas e capazes de lidar com as adversidades e diversidades da vida; parece ser a saída menos traumática. Faz parte que aprendam a conviver em compartilhamento com outras crianças, de diferentes famílias, desenvolvendo-se juntas.

Pode ajudar a deixar ir na hora em que podem ir por desejo próprio. Vão se afastando devagar desde que nascem, quando dispensam o útero. É preciso deixar que vão, confiar em tudo de bom que foi compartilhado, enraizado, erguido e alastrado. Melhorar no que se errou, enfim não repetir algo ruim, que não dá certo, que espanta o amor é tarefa para as convivências íntimas, agora no tempo que eles têm. E eles retribuem de acordo com o que receberam, mesmo quando não lembram de tudo que os adultos pais lembram. Temos que lidar com a fato de que eles amam a família, mas estão em fase de desbravar mundo e novos afetos, gentes e bichos que sejam sua referência maior, para que possam ficar mais tempo por aqui sem saudade de nós.

A vida é perfeita, o desenvolvimento do ser humano, incluindo o ocaso também como fase de desenvolvimento, é perfeito. Tudo que podemos fazer de melhor é acompanhar, observar e respeitar as leis da natureza. Há muitas adversidades no caminho e todas elas são próprias, frutos do que se viveu, do que se trouxe na carga genética, com influência da história,do ambiente social e econômico e uma pitada de acaso, que tenta ser explicado por religiões e ceitas.

Costumeiramente pais e mães que lidaram com pouca disposição emocional nos primeiros anos de vida e da adolescência dos rebentos, tendem a lidar mal com a chegada da vida adulta dos filhos e filhas. Podem ter passado a adolescência deles doutrinando ou reclamando, mas diante de filhos adultos não largam o osso, continuam pautando, ajudando, cobrando e reclamando.

Querem colo dos filhos, querem brincar, estar juntos. Há pais e mães que se mantêm na preferência pelo distanciamento, mas todos eles ficarão ali brincando com aquilo que foi construido. Nem menos nem mais, só o reflexo em versão hard.

Do útero ao peito, do peito ao chão, no chão os primeiros passos, as primeiras corridas, o sobe e desce, o pátio, a praça, o parque, as casas dos amigos e parentes, a escola, os colegas, os próprios amigos e amigas e lá se vão e que sejam eles mesmos.










sábado, 10 de dezembro de 2016

Medo do Papai Noel





Cláudia Rodrigues

O guri estava com 4 anos e desde o primeiro contato com a figura do Papai Noel, sempre resistiu. Com um ano abriu o berreiro só de olhar. Pai e mãe acolheram, era muito pequeno para entender sobre o velhinho e a lenda dos presentes.

No segundo ano decidiram tentar de novo, afinal todas as crianças gostam e nesse ano seria diferente, ele já pedia coisas, era só associar a figura do Papai Noel com a palavra Natal, a festa e tudo daria certo.
De novo o menino encrencou, assim que viu o sujeito de roupas vermelhas e barbas brancas pulou no colo do pai gritando desesperado.
A mãe sorriu, tentou seduzir, mostrou as outras crianças, como pegavam balinhas, como o velho era bacana com elas, mas não teve jeito, o moleque nem olhava, com os olhos apertados, enfiados no colarinho do pai.
Meio frustrados, desistiram, não era bom insistir, talvez aos três anos.

No ano seguinte foram de novo, dessa vez escolheram ir a um shopping diferente para ver se funcionava. Nem chegaram à introdução, o menino havia corrido na frente dos pais, atraido pelas luzes da decoração, mas acabou dando de cara com o Papai Noel e voltou como um raio para perto dos pais, escalando a mãe em menos de um segundo, chafurdando na blusa da genitora.
Dessa vez o pai que insistiu, chegou a dar uma forçada, mas desistiu quando a mulher fez um sinal de que forçar não seria uma boa ideia.
E o moleque chegou aos 4 anos, já jogava damas, respeitava as regras do jogo, sabia pular, mergulhar e nadar. Dessa vez com certeza daria certo.
Lá foram os pais para nova tentativa.

O guri assistiu meio entendiado a chegada do Papai Noel de helicóptero, depois entrou com os pais na fila para ver o Papai Noel e permaneceu entediado, queria comer algo, pediu para ir ao parque andar de bicicleta.
Os pais ali, insistindo.
Filho, só mais um pouco e já vamos ver o Papai Noel e logo podemos comer e ir ao parque.
Alguns minutos depois o piá formula uma pergunta:
Por que vocês querem ver o homem fantasiado?
É o Papai Noel, filho, você não quer vê-lo?
Não, não quero, quero ir à praça.
Filho, você não gosta do Papai Noel?
Gostei da parte do helicóptero.
Você tem medo de chegar perto dele?
Não, eu tenho vergonha.
Vergonha de quê?
De um homem grande se fantasiar assim em vez de Batman.

terça-feira, 22 de novembro de 2016


O gauche do parto humanizado no Rio Grande do Sul

O gauche do parto humanizado no Rio Grande do Sul, Ricardo Herbert Jones, foi cassado pelo Conselho Regional de Medicina do RS.
Por motivos políticos, depois de uma defesa irretocável do ponto de vista clínico. O que se fortalece é  o ideal de nascimentos hospitalares, a garantia de que o sistema, riquíssimo em cirurgias desnecessárias e iatrogenias, continue a pleno vapor. O que se persegue é o atendimento humano e o respeito pelo desejo das mulheres que desejam parir em posições livres nos hospitais ou em casa.

Compartilho entrevista concedida em 2012

Cláudia Rodrigues

Autor de Memórias de um Homem de Vidro – Reminiscências de um Obstetra Humanista, já na 3ª edição, esse obstetra gaúcho é o único médico em Porto Alegre que assiste partos domiciliares. Respeitado internacionalmente por grandes nomes da humanização, como Michel Odent, Robbie Davis-Floyd e Debra Pascali-Bonaro, ele dá cursos e palestras em Portugal, Uruguai, México e nas capitais brasileiras que estão à frente do movimento pela humanização do parto e do nascimento.

Filho de um funcionário da CEEE e de uma funcionária da GE que deixou de trabalhar para formar família, Ricardo Herbert Jones nasceu em novembro de 1959 no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. A família Jones chegou a morar em São Leopoldo para facilitar o trajeto do pai, que trabalhava nessa cidade, mas voltou para Porto Alegre quando Ricardo estava com 6 anos. Foi criado no bairro Menino Deus no tempo em que as pessoas colocavam cadeiras na calçada nos finais de tarde de verão. Atravessava a praça para ir à Escola Estadual Presidente Roosevelt, andava solto, sem medo de nada. Um de seus maiores prazeres era sentir o cheiro da comida que a própria mãe estava a preparar quando ele voltava do colégio. O último ano do 2º grau acumulou com o cursinho pré-vestibular Mauá e não deu outra: entrou na já disputada medicina da UFRGS em 1977, aos 17 anos.

Sul 21: Os cursos de medicina têm fama de serem divertidos, ainda que se estude muito os estudantes saem, tem as patotas, como todos os cursos. Como foi essa fase para o Sr.?

Ricardo Jones: Não tive isso, fui pai aos 22 anos e adorei descobrir a paternidade tão cedo. Para mim a faculdade era uma referência profissional, de formação e já no segundo ano eu estava trabalhando, fazia muitos plantões. Nunca fui de festas, políticas, o tempo em que não estava estudando e trabalhando, ficava em casa, eu era pai, sempre brinquei muito com meus filhos. Apesar de a paternidade ter surgido em minha vida de forma prematura, eu jamais me senti prejudicado por esta extemporaneidade. Ser pai muito jovem foi o grande estímulo que tive para me dedicar à minha grande paixão: o trabalho com o feminino e o nascimento humano, os meus filhos foram o motor do meu crescimento.

Sul21: Os teus filhos nasceram de parto normal...

R.J.: Sim, os dois, Lucas nasceu em 1982 e Isabel em 1985, ambos de parto normal, isso não era uma questão, nunca imaginamos, Zeza e eu, uma cesariana. A opção pelo parto normal, na época, não estava relacionada com um ativismo consciente, mas apenas com a ideia de que “essa era a forma normal de ter um filho”. Temo que os pais que estão tendo seus filhos hoje sofram com uma imagem pervertida dessa situação: o “normal” passa a ser planejar uma grande cirurgia abdominal para a extração de um bebê. E isso me parece uma tragédia, visto que é um modelo estético-cultural que favorece instituições e corporações, mas que sacrifica o bem estar de mães e bebês.

Ele levanta, abre um armário e traz um maço de fichas datadas desde 1985, quando atendeu seu primeiro parto oficial. Nome da mãe, do bebê, o histórico do atendimento em letras de forma caprichadas. A cada 100 casos ele fecha os índices: apgar – nota que se dá ao bebê ao nascer, o endereço da mãe, o peso, sexo. Observa e mostra. “Olha, aqui um ano que obtive 11% de cesarianas, aqui nesse maço 22%, aqui as justificativas para cada cesariana realizada, vamos aprendendo, tenho tudo anotado desde essa primeira parturiente, que por acaso tem o nome da minha esposa.”

Sul21: Como se explica que no RS, em 2012, na capital do Estado, apenas um médico atenda partos domiciliares?  

R.J.: A formação de médicos humanistas obedece dois modelos essenciais, que simulam os processos adaptativos na zoologia. Podemos produzir médicos humanistas por seleção natural ou por mutação. Eu sou uma “mutação”, visto que nunca recebi de outros colegas do meu meio o estímulo para estudar e trabalhar em um modelo de humanização.  Entretanto, espero que através de uma maior conscientização da sociedade civil sobre direitos reprodutivos e sexuais ocorra uma exigência maior pelo respeito aos aspectos subjetivos do nascimento. Com isso, novos médicos serão levados a ter uma postura mais humanizada por “seleção natural”, pois a atitude mais cidadã dos clientes forçará uma reação adaptativa dos profissionais. O RS é um dos estados mais atrasados do Brasil na humanização do nascimento, a questão não se encerra em ser domiciliar. Parto domiciliar é um direito da mulher, um direito de escolha a que recorrem mulheres bem informadas, que lêem muito, consultam evidências, são críticas em relação a esse sistema obstétrico que é iatrocêntrico, centrado no médico; etiocêntrico, centrado na patologia e hospitalocêntrico, centrado no hospital. Podemos citar o caso da episiotomia de rotina, http://www.scielo.br/pdf/rbgo/v29n1/a01v29n1.pdf procedimento que está derrubado em termos científicos desde 1983 e continua acontecendo.

Sul21: O Sr. Não faz episiotomia?

R.J. Vê bem como é complicado, eu não faço desde 1990, levei anos para conseguir parar porque procedimentos na medicina são ritualísticos, repetidos, padronizados e é difícil parar um ritual daquilo que sempre se fez igual, é como uma reza e o sistema médico segue essa religião, é isso que o fortalece, a repetição. Estamos em 2012 e aqui no RS 80% das mulheres sofrem episiotomia ainda! É assim com a tricotomia também http://www.scielo.br/pdf/csc/v10n3/a20v10n3.pdf, não tem valor científico, é mais arriscado inclusive, não se justifica raspar os pelos pubianos da mulher para o parto. Isso já se sabe, mas então o que se faz para manter o ritual? Deixa-se um chumaço de pelos aparentes e raspa-se a parte de baixo, é uma maneira de infantilizar a mulher, como o tratamento muito comum de chamar as parturientes de “mãezinha”. Como as mulheres podem se sentir fortes para parir sendo tratadas como meninas?

Sul21: Como o Sr. age quando uma cliente pede uma cesariana eletiva, quer agendar?

R.J. Não faço cesarianas eletivas a pedido, sem qualquer indicação clínica, mas as minhas clientes, 45% delas chega pedindo parto hospitalar humanizado, elas são atendidas por mim hoje no Hospital Divina Providência e cerca de 65% delas pedem parto domiciliar, já vieram com indicação de uma amiga ou conhecida que viveu a experiência de um parto. As minhas clientes são pessoas que sabem o que querem em sua maioria, elas buscam um atendimento humanizado, seja hospitalar ou domiciliar.

Sul21: Como é um atendimento fora do padrão de um hospital e porque esse “hoje” atendo no Divina Providência?

R.J: Não usamos medicamentos rotineiramente; em algumas circunstancias usamos, não dopamos, a dor é tratada prioritariamente com massagens, carinho, apoio, a mulher é dona do parto, é a protagonista, nós estamos ali para servir, assistir e esperar o tempo dela tornando esse tempo o mais agradável possível. Sobre “hoje”: o Divina Providência é o hospital que aceita de maneira mais tranquila o modo humanizado de atendimento ao parto, mas em qualquer hospital um obstetra como eu, que entra com uma equipe, uma doula, uma enfermeira obstetra, a Zeza, e com as pessoas que a gestante escolhe porque a parturiente tem o direito de querer o marido ali ativo ou a mãe, que seja; é um obstetra que incomoda. É luz baixa, horas a mais que se ocupa o ambiente, tudo isso é desconfortável do ponto de vista institucional e causa estranhamento, incômodos, não deixa de ser uma crítica ao sistema que existe ali como um todo, é diferente do que todos fazem, então não é uma situação cativa estabelecida.

Sul21: Não há apoio de universidades aqui no RS, não há vínculos entre a universidade e as maternidades públicas e privadas, como isso tende a ficar agora que a Rede Cegonha está aí querendo humanizar os partos no SUS?

R.J.: Aqui no RS o professor Alberto Abech, da UFRGS, é simpático ao ideário da humanização aliando-o a uma conhecida competência profissional. Não lembro de outro nome do ambiente acadêmico. No RS o parto é feito sob o modelo da década de 1950 e o mais comum é a cesariana, mais prática para os obstetras, mais rentável.

Nesse momento temos pessoas de alto nível técnico da humanização no Governo Federal, como Esther Vilela, coordenadora da Área Técnica da Saúde da Mulher. Mulheres de linha de frente como Daphne Ratter, Mazé e Tânia Lago têm trabalhado para que a humanização do parto e do nascimento se desenvolva no Brasil. O representante na sede brasileira da OPAS –Organização Pan-Americana da Saúde é o Rodolfo Gomez, que foi diretor executivo da International MotherBaby Childbirth Initiative http://midwiferytoday.com/articles/IMBCI.asp, então temos aí um time que trabalha com base em evidências por uma humanização do atendimento ao parto e ao nascimento e a ideia é colocar em prática nacionalmente. Um nome que não posso deixar de citar é o da Dra Melania Amorim, que não está trabalhando diretamente na Rede Cegonha, mas é um exemplo, talvez o maior Brasil, ela tem um trabalho e uma trajetória profissional incontestável e também atende partos domiciliares. http://guiadobebe.uol.com.br/parto-em-casa-e-seguro/  Sul21: Como o Sr. vê uma mudança de atitudes dos obstetras do RS se eles consideram parto domiciliar um risco, acham frescura o atendimento humanizado, não freqüentam palestras sobre humanização, não se atualizam, continuam fazendo episiotomias de rotina, tricotomia e principalmente cesarianas sem indicação clínica, muitas vezes eletivas?
 
R.J. Parte do montante de 9 bilhões que serão aplicados pela Rede Cegonha será investido em casas de parto. Aqui em Porto Alegre não temos nenhuma e pelo modelo que se pretende implantar, é fundamental a presença da enfermeira obstetra. Uma casa de parto deve ser coordenada por enfermeiras obstetras, é assim em todo o mundo quando se utiliza sistema de referências para partos de baixo risco. A Rede Cegonha prevê que seja assim e é ótimo, melhor para as mulheres. Em outros lugares do Brasil isso já é uma realidade, mas no RS a enfermeira ainda é a mulher da bandeja, que serve o médico. Aqui no RS uma enfermeira obstetra só atende parto se for uma emergência e não houver um médico por perto, mas isso é inadequado, basta ver o modelo existente em países europeus onde as taxas de morbimortalidade são muito menores e a assistência é baseada no trabalho das enfermeiras obstetras, sempre com respaldo de obstetras em caso de necessidade. As enfermeiras obstetras são capacitadas para atender partos, mas como aqui não existe essa função, não podem praticar, sendo assim pode haver um problema de falta de experiência, será algo novo para elas. Em São Paulo tem um curso na USP para formar obstetrizes e em várias capitais já existem casas de parto coordenadas por enfermeiras obstetras e parteiras profissionais. http://www.ims.uerj.br/lappis/index.php/incubadora/62-casa-de-parto/249-casa-da-gestante-zilda-arns-melhor-iniciativa-institucional-segundo-a-opasoms.html 

Sul21: Em outros lugares do Brasil é fácil essa relação entre a assistência humanizada pró-parto e o universo cesarista criado pela obstetrícia sob o poder dos médicos? No Rio de Janeiro não há problemas com as casas de parto?

R.J.: Sim, as casas de parto frequentemente sofrem embargos dos conselhos de medicina e os poucos médicos que apoiam a humanização acabam sendo punidos, é uma maneira de intimidar os simpatizantes que vêm da medicina a manter os rituais, o poder, a proteção à corporação médica como dona do parto fisiológico, mas a situação de atendimento ao parto, os abusos e os problemas vêm se agravando nos últimos anos porque os médicos não querem despender o tempo necessário para acompanhar partos, somos treinados para a cirurgia e muitos estão focados exclusivamente na questão tempo=dinheiro. O que aconteceu recentemente com o Marcos Dias, no Rio de Janeiro, é inominável, mas a reação, por parte de colegas, de redes de mulheres, http://partodoprincipio.blogspot.com/2011/12/nos-tambem-apoiamos-marcos-dias.html da Rehuna, http://www.rehuna.org.br/ veio com força. Há reações a esses linchamentos morais, quando se ataca a pessoa porque não se consegue combater as ideias.
 
Sul21: Esses linchamentos morais, ameaças, como no caso do Dr. Marcos Dias, acontecem em decorrência de um parto malsucedido, de um natimorto. Como é isso em números?

R.J.: É simples, se um bebê nasce via cesariana eletiva com 36 semanas e morre dentro do hospital, considera-se uma fatalidade, essas coisas são essencialmente impunes porque estão dentro da mitologia contemporânea de veneração à tecnologia. Esse procedimento é condenado pela Organização Mundial de Saúde, mas a cesariana eletiva sem indicação clínica é muito comum no Brasil. Além de causar mortes, acarreta problemas cardiorrespiratórios em bebês, baixo peso, problemas de pega na amamentação, mas está protegida pela corporação e pelas instituições. Os números são alarmantes, há pesquisas, evidências, a cesariana eletiva sem indicação clínica já está sendo estudada como epidemia, está banalizada. Sabe-se também que 27% das mulheres reclamam de maus tratos na hora do parto dentro do hospital, isso tudo fica assim, há uma proteção da corporação e fica subentendido que aquele bebê não teria salvação. Já o caso de transferência para hospital a partir de uma casa de parto ou do domicílio da mulher, basta um caso em 10 anos, isso aconteceu comigo, para que seja aberto um processo. O parto domiciliar ou em casas de parto no Brasil, ainda que seja seguro e baseado em evidências, é atacado e a melhor forma de atacar é a perseguição ao indivíduo, que é frágil dentro do sistema. A cesariana salva vidas, sempre vai salvar, em gestações de alto risco, o que se verifica durante o pré-natal, não devem ser encaminhadas para um parto domiciliar, embora nem sempre um alto risco seja necessariamente indicação para cirurgia. Em casos de gestação gemelar, de pressão alta e diabetes, nem sempre a cesariana é uma indicação imediata, embora o acompanhamento do trabalho de parto  e o parto deva ocorrer em uma maternidade. Isso conforme as evidências. Na prática o mais comum é que uma diabética tenha sua cesariana agendada. 

Sul21: Ser médico obstetra e atender partos domiciliares é muito arriscado, então por que o Sr. entrou nisso, por que correr esse risco em vez de atender apenas em hospitais? É um bom filão no mercado, ganha-se bem atendendo esse público seleto e bem informado?

R.J: Não sei se é um bom filão, não sou um sujeito ligado em dinheiro e status, meu carro tem dez anos e como médico atendo pessoas e essa necessidade que existe, para algumas mulheres, de parir seus filhos, viver essa experiência que é de vida e não de doença. Também porque é um direito da mulher escolher o local em que se sente mais segura para parir, portanto essa é uma questão, assim como o aborto, que extrapola o debate puramente médico; é uma discussão que envolve uma compreensão mais complexa de direitos humanos reprodutivos e sexuais. Tem a ver com liberdade e autonomia das mulheres, e é por essa razão que países de larga tradição democrática da Europa, como a Inglaterra, estimulam a livre escolha do lugar de parir. Há evidências de que com um bom pré-natal, não sendo a gestante de alto risco, o parto fisiológico é tão seguro em casa quanto no hospital e além disso respeita-se o ritual familiar, vive-se com aquela família a intensidade de um momento muito especial. Do ponto de vista humano é extremamente gratificante acompanhar a dimensão familiar e emocional do parto; é uma riqueza que o modelo tradicional não oferece para a família e que muitos médicos não se interessam, mas a mim me interessa e me toca.
“É assim”, diz, acessando um vídeo de um parto que assistiu. As imagens brotam na tela e ele vai narrando a história daquela família com ele. Uma gaúcha, casada com um indiano, decide ter o bebê no RS, optam pelo hospitalar humanizado. O primeiro filho nasceu de cesariana na Índia. Ela luta, recebe massagens da doula, o marido se mantém sorridente. “Os pais ajudam muito quando se mantêm confiantes.” A doula faz massagens, conversa, acalma a parturiente. “Ela lutou, foi um parto longo, mas os batimentos cardíacos do bebê estiveram sempre bem, o estado geral dela também, muita segurança, ela foi corajosa.” O bebê vem, é uma menina, nasce rosada, o médico recebe, desenrola o cordão e entrega para a mãe imediatamente. Ele volta para a câmera e filma a felicidade dos envolvidos em um momento pessoal só deles. Sem intervenções desnecessárias, o bebê procura o seio, a mãe vai reconhecendo o filho fora da barriga pela primeira vez. O pai comemora e o menino, filho mais velho, chega para ver a irmã.
 “Olha, o menino, filho deles, muito alegre esse menino, muito bonito, ele faz aí a imitação de um  Tiranossaurus rex, ele fez questão de me mostrar como era sua imitação perfeita de tiranossauros rex e fiz questão de colocar a imagem aí na edição do vídeo, pareceu importante incorporar imagens do menino no parto da irmã, na festa íntima e particular deles”.
 Depois de tantos anos assistindo partos e vídeos que ele mesmo produz para presentear às famílias, o médico se emociona, assim como o fotógrafo e a repórter. Está plenamente compreendida por que, apesar dos dissabores, dos linchamentos morais, dos riscos para a carreira, um obstetra escolhe atender partos assim, fora do modelo tradicional e hoje, em 2012, já com evidências de segurança. 







domingo, 20 de novembro de 2016

Efebofobia, a aversão a jovens


Cláudia Rodrigues
Efebofobia, medo ou aversão a adolescentes e jovens, não é tão incomum, afeta o comportamento, as relações sociais e íntimas entre jovens e pessoas das mais variadas faixas etárias, além da família e professores.
Jovens são originalidade em estado bruto, merecem respeito.

Jovens que desejam melhorar as escolas que têm, muitas em péssimas condições de manutenção, depois de sucessivos anos de descaso político, são maltratados pela polícia a serviço do Estado. Como assim? Golpe. Baixo.

Para ajudar, atraso de salários, depósito de toda a responsabilidade financeira  dos estados e do país para a educação. Os professores e alunos das escolas públicas são escolhidos para sofrer a própria exclusão escolar ou ficarem no salve-se quem puder.

E sim, nossas escolas contam com profissionais de alta qualidade, média e casos graves que precisam tratamento, quando é necessário conviver e educar jovens ao mesmo tempo em que há aversão aos comportamentos naturais dos jovens.

Para a efebofobia não há vacinas, é preciso encarar, sentir e aprender a lidar com os próprios limites diante da força tão viva dos jovens. José Angêlo Gaiarsa foi ótimo em explicar isso, ele chamava os adultos de invejosos em relação às crianças e aos jovens.

E é verdade. Não que não seja necessário fôlego para dar conta do autocentramento dos jovens, voltados para eles, focados em suas vidas, cheios de si. No início pode ser difícil para eles darem conta das novas demandas da autonomia. São esquecidos, especialmente se tiveram responsáveis muito controladores, podem parecer avoados aos olhos dos adultos ou “ofensivos”, quando se irritam com aquilo que consideram implicância. Eles têm vigor, vigor juvenil, recém-nascido, estão em explosões hormonais e corticais, merecem mais que respeito, cuidado, atenção, serem ouvidos e atendidos em suas necessidades, que passam longe de viagens e presentes. Eles querem escola, direito a estudar, passar no Enem, entrarem na universidade. 

A sociedade adulta espera dos adolescentes muito mais do que eles podem dar em troca e dá muito menos do que eles necessitam para desenvolverem suas capacidades. E a primeira coisa bem ruim que se faz contra a boa relação com adolescentes ou jovens é confundir promoção de convivência com obrigatoriedade. O jovem gosta e precisa estar só tanto quanto gosta e precisa de amigos, mesmo que seja só um.

Adultos têm em geral pouca paciência com jovens, especialmente se já vieram de uma relação de pouca paciência com os filhos pequenos. Nas relações profissionais entre alunos e professores pode ser diferente, mas igualmente refletirá a história de ambos em suas famílias. Os adultos tendem a tratar adolescentes e filhos jovens com autoritarismo ou descaso. Se sentem enfrentados, confrontados, não dão conta de seus próprios insucessos diante da vida brotando, plena de autoconfiança e bons propósitos. Começam a agir meio que na vingança e no despeito com chantagens, subornos e intensidades variáveis de violência.

Não há como não herdar a educação familiar e é um processo escolher e conseguir fazer repetições ou reparações conscientes, mas a maior parte de nós repete feito catraca por gerações a fim, inconscientemente.
O filme atual na macro, no atacado, é o mesmo da micro, o varejo é esse, repetição em grau master numa sociedade que consegue em muitos casos ir aos bastidores do conservadorismo para encontrar razões em crenças absolutamente retrógradas.

E os ódios, as paixões de horror, essa coisa Barraco da Globo Produções tomou uma proporção paquidérmica que paira sobre nós. Depois de anos assistindo novelas e JN, Caras e Vejas, as pessoas saíram para a rua e começaram a esbravejar contra jovens e direitos humanos fundamentais.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

14 anos


Memórias em construção constante Cláudia Rodrigues Depois de uma tarde de andanças no centro ela senta ao meu lado e em frente ao pai no banco do ônibus, suspira e exclama com evidente alegria e sobra de energia: "Como eu gosto de vir ao centro da cidade!"
"Nós também", respondemos de imediato.

E o resto da viagem foi povoado pelas memórias do centro.
Teve o primeiro dia em que a levei ao Café Haiti e contei que aquele lugar era muito antigo, conhecia-o da versão anterior, mas antes da versão da minha época, ainda houve outra versão. Olhamos as fotos de todas as versões e mostrei a ela o que ainda era muito semelhante, o clima da "lanchonete". Ela pergunta mais e mais, comentando com sua natural neutralidade. Ela, que também vai ao shopping, como qualquer adolescente.

Coloca limites quando implico com os prédios envidraçados, acha que exagero na paixão e me mostra a razão admirando com tanto gosto as construções antigas. Retruco, falo do espaço e da qualidade.
Ela argumenta sobre espaço e número de pessoas. Xeque-mate.

Aos cinco anos conheceu a Casa de Cultura e o quarto do Mario Quintana, mas o que rendeu a conversa foram suas perguntas e reflexões sobre os artistas que pintavam quadros na rua e os quadros dos artistas do museu. Não deixou por menos ao dizer que os quatros dos pintores podiam ser tanta poesia quanto o Mario Quintana era um pintor com palavras. Ganhamos nós dois mais uns 10 anos de vida ao ouvir isso daquela figurinha de apenas cinco anos. E não havia vaidade alguma em suas palavras, ela não tinha exata noção do que dizia e nem entendeu nossa alegria.

No centro tem tudo e de tudo, é lugar dos super-incluídos e dos excluídos, de toda gente que não idolatra qualquer tipo de pasteurização. As pessoas vêm dos arredores para vender seus produtos. O mercado recebe alguma coisa, no mais ficam por ali vendendo para os passantes. O comércio é a mistura original dos imigrantes. Árabes, portugueses, espanhóis, africanos, asiáticos e mais os chegados do interior e de todos os estados brasileiros. Só o centro é uma amostra da inteireza da cidade e foi ali que tudo começou.

Dessa última vez comprei duas mangas doces e suculentas que não existem no Zaffari.
Um centro higienizado só com mangas do Zaffari, repleto de carrões e sem espaço para as pessoas é um projeto de insegurança pública. A gentrificação pode ser grande, mas não pode atingir o cérebro público da cidade. E aí todo cuidado é pouco.