terça-feira, 22 de novembro de 2016

O gauche do parto humanizado no Rio Grande do Sul

O gauche do parto humanizado no Rio Grande do Sul, Ricardo Herbert Jones, foi cassado pelo Conselho Regional de Medicina do RS.
Por motivos políticos, depois de uma defesa irretocável do ponto de vista clínico. O que se fortalece é  o ideal de nascimentos hospitalares, a garantia de que o sistema, riquíssimo em cirurgias desnecessárias e iatrogenias, continue a pleno vapor. O que se persegue é o atendimento humano e o respeito pelo desejo das mulheres que desejam parir em posições livres nos hospitais ou em casa.

Compartilho entrevista concedida em 2012

Cláudia Rodrigues

Autor de Memórias de um Homem de Vidro – Reminiscências de um Obstetra Humanista, já na 3ª edição, esse obstetra gaúcho é o único médico em Porto Alegre que assiste partos domiciliares. Respeitado internacionalmente por grandes nomes da humanização, como Michel Odent, Robbie Davis-Floyd e Debra Pascali-Bonaro, ele dá cursos e palestras em Portugal, Uruguai, México e nas capitais brasileiras que estão à frente do movimento pela humanização do parto e do nascimento.

Filho de um funcionário da CEEE e de uma funcionária da GE que deixou de trabalhar para formar família, Ricardo Herbert Jones nasceu em novembro de 1959 no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. A família Jones chegou a morar em São Leopoldo para facilitar o trajeto do pai, que trabalhava nessa cidade, mas voltou para Porto Alegre quando Ricardo estava com 6 anos. Foi criado no bairro Menino Deus no tempo em que as pessoas colocavam cadeiras na calçada nos finais de tarde de verão. Atravessava a praça para ir à Escola Estadual Presidente Roosevelt, andava solto, sem medo de nada. Um de seus maiores prazeres era sentir o cheiro da comida que a própria mãe estava a preparar quando ele voltava do colégio. O último ano do 2º grau acumulou com o cursinho pré-vestibular Mauá e não deu outra: entrou na já disputada medicina da UFRGS em 1977, aos 17 anos.

Sul 21: Os cursos de medicina têm fama de serem divertidos, ainda que se estude muito os estudantes saem, tem as patotas, como todos os cursos. Como foi essa fase para o Sr.?

Ricardo Jones: Não tive isso, fui pai aos 22 anos e adorei descobrir a paternidade tão cedo. Para mim a faculdade era uma referência profissional, de formação e já no segundo ano eu estava trabalhando, fazia muitos plantões. Nunca fui de festas, políticas, o tempo em que não estava estudando e trabalhando, ficava em casa, eu era pai, sempre brinquei muito com meus filhos. Apesar de a paternidade ter surgido em minha vida de forma prematura, eu jamais me senti prejudicado por esta extemporaneidade. Ser pai muito jovem foi o grande estímulo que tive para me dedicar à minha grande paixão: o trabalho com o feminino e o nascimento humano, os meus filhos foram o motor do meu crescimento.

Sul21: Os teus filhos nasceram de parto normal...

R.J.: Sim, os dois, Lucas nasceu em 1982 e Isabel em 1985, ambos de parto normal, isso não era uma questão, nunca imaginamos, Zeza e eu, uma cesariana. A opção pelo parto normal, na época, não estava relacionada com um ativismo consciente, mas apenas com a ideia de que “essa era a forma normal de ter um filho”. Temo que os pais que estão tendo seus filhos hoje sofram com uma imagem pervertida dessa situação: o “normal” passa a ser planejar uma grande cirurgia abdominal para a extração de um bebê. E isso me parece uma tragédia, visto que é um modelo estético-cultural que favorece instituições e corporações, mas que sacrifica o bem estar de mães e bebês.

Ele levanta, abre um armário e traz um maço de fichas datadas desde 1985, quando atendeu seu primeiro parto oficial. Nome da mãe, do bebê, o histórico do atendimento em letras de forma caprichadas. A cada 100 casos ele fecha os índices: apgar – nota que se dá ao bebê ao nascer, o endereço da mãe, o peso, sexo. Observa e mostra. “Olha, aqui um ano que obtive 11% de cesarianas, aqui nesse maço 22%, aqui as justificativas para cada cesariana realizada, vamos aprendendo, tenho tudo anotado desde essa primeira parturiente, que por acaso tem o nome da minha esposa.”

Sul21: Como se explica que no RS, em 2012, na capital do Estado, apenas um médico atenda partos domiciliares?  

R.J.: A formação de médicos humanistas obedece dois modelos essenciais, que simulam os processos adaptativos na zoologia. Podemos produzir médicos humanistas por seleção natural ou por mutação. Eu sou uma “mutação”, visto que nunca recebi de outros colegas do meu meio o estímulo para estudar e trabalhar em um modelo de humanização.  Entretanto, espero que através de uma maior conscientização da sociedade civil sobre direitos reprodutivos e sexuais ocorra uma exigência maior pelo respeito aos aspectos subjetivos do nascimento. Com isso, novos médicos serão levados a ter uma postura mais humanizada por “seleção natural”, pois a atitude mais cidadã dos clientes forçará uma reação adaptativa dos profissionais. O RS é um dos estados mais atrasados do Brasil na humanização do nascimento, a questão não se encerra em ser domiciliar. Parto domiciliar é um direito da mulher, um direito de escolha a que recorrem mulheres bem informadas, que lêem muito, consultam evidências, são críticas em relação a esse sistema obstétrico que é iatrocêntrico, centrado no médico; etiocêntrico, centrado na patologia e hospitalocêntrico, centrado no hospital. Podemos citar o caso da episiotomia de rotina, http://www.scielo.br/pdf/rbgo/v29n1/a01v29n1.pdf procedimento que está derrubado em termos científicos desde 1983 e continua acontecendo.

Sul21: O Sr. Não faz episiotomia?

R.J. Vê bem como é complicado, eu não faço desde 1990, levei anos para conseguir parar porque procedimentos na medicina são ritualísticos, repetidos, padronizados e é difícil parar um ritual daquilo que sempre se fez igual, é como uma reza e o sistema médico segue essa religião, é isso que o fortalece, a repetição. Estamos em 2012 e aqui no RS 80% das mulheres sofrem episiotomia ainda! É assim com a tricotomia também http://www.scielo.br/pdf/csc/v10n3/a20v10n3.pdf, não tem valor científico, é mais arriscado inclusive, não se justifica raspar os pelos pubianos da mulher para o parto. Isso já se sabe, mas então o que se faz para manter o ritual? Deixa-se um chumaço de pelos aparentes e raspa-se a parte de baixo, é uma maneira de infantilizar a mulher, como o tratamento muito comum de chamar as parturientes de “mãezinha”. Como as mulheres podem se sentir fortes para parir sendo tratadas como meninas?

Sul21: Como o Sr. age quando uma cliente pede uma cesariana eletiva, quer agendar?

R.J. Não faço cesarianas eletivas a pedido, sem qualquer indicação clínica, mas as minhas clientes, 45% delas chega pedindo parto hospitalar humanizado, elas são atendidas por mim hoje no Hospital Divina Providência e cerca de 65% delas pedem parto domiciliar, já vieram com indicação de uma amiga ou conhecida que viveu a experiência de um parto. As minhas clientes são pessoas que sabem o que querem em sua maioria, elas buscam um atendimento humanizado, seja hospitalar ou domiciliar.

Sul21: Como é um atendimento fora do padrão de um hospital e porque esse “hoje” atendo no Divina Providência?

R.J: Não usamos medicamentos rotineiramente; em algumas circunstancias usamos, não dopamos, a dor é tratada prioritariamente com massagens, carinho, apoio, a mulher é dona do parto, é a protagonista, nós estamos ali para servir, assistir e esperar o tempo dela tornando esse tempo o mais agradável possível. Sobre “hoje”: o Divina Providência é o hospital que aceita de maneira mais tranquila o modo humanizado de atendimento ao parto, mas em qualquer hospital um obstetra como eu, que entra com uma equipe, uma doula, uma enfermeira obstetra, a Zeza, e com as pessoas que a gestante escolhe porque a parturiente tem o direito de querer o marido ali ativo ou a mãe, que seja; é um obstetra que incomoda. É luz baixa, horas a mais que se ocupa o ambiente, tudo isso é desconfortável do ponto de vista institucional e causa estranhamento, incômodos, não deixa de ser uma crítica ao sistema que existe ali como um todo, é diferente do que todos fazem, então não é uma situação cativa estabelecida.

Sul21: Não há apoio de universidades aqui no RS, não há vínculos entre a universidade e as maternidades públicas e privadas, como isso tende a ficar agora que a Rede Cegonha está aí querendo humanizar os partos no SUS?

R.J.: Aqui no RS o professor Alberto Abech, da UFRGS, é simpático ao ideário da humanização aliando-o a uma conhecida competência profissional. Não lembro de outro nome do ambiente acadêmico. No RS o parto é feito sob o modelo da década de 1950 e o mais comum é a cesariana, mais prática para os obstetras, mais rentável.

Nesse momento temos pessoas de alto nível técnico da humanização no Governo Federal, como Esther Vilela, coordenadora da Área Técnica da Saúde da Mulher. Mulheres de linha de frente como Daphne Ratter, Mazé e Tânia Lago têm trabalhado para que a humanização do parto e do nascimento se desenvolva no Brasil. O representante na sede brasileira da OPAS –Organização Pan-Americana da Saúde é o Rodolfo Gomez, que foi diretor executivo da International MotherBaby Childbirth Initiative http://midwiferytoday.com/articles/IMBCI.asp, então temos aí um time que trabalha com base em evidências por uma humanização do atendimento ao parto e ao nascimento e a ideia é colocar em prática nacionalmente. Um nome que não posso deixar de citar é o da Dra Melania Amorim, que não está trabalhando diretamente na Rede Cegonha, mas é um exemplo, talvez o maior Brasil, ela tem um trabalho e uma trajetória profissional incontestável e também atende partos domiciliares. http://guiadobebe.uol.com.br/parto-em-casa-e-seguro/  Sul21: Como o Sr. vê uma mudança de atitudes dos obstetras do RS se eles consideram parto domiciliar um risco, acham frescura o atendimento humanizado, não freqüentam palestras sobre humanização, não se atualizam, continuam fazendo episiotomias de rotina, tricotomia e principalmente cesarianas sem indicação clínica, muitas vezes eletivas?
 
R.J. Parte do montante de 9 bilhões que serão aplicados pela Rede Cegonha será investido em casas de parto. Aqui em Porto Alegre não temos nenhuma e pelo modelo que se pretende implantar, é fundamental a presença da enfermeira obstetra. Uma casa de parto deve ser coordenada por enfermeiras obstetras, é assim em todo o mundo quando se utiliza sistema de referências para partos de baixo risco. A Rede Cegonha prevê que seja assim e é ótimo, melhor para as mulheres. Em outros lugares do Brasil isso já é uma realidade, mas no RS a enfermeira ainda é a mulher da bandeja, que serve o médico. Aqui no RS uma enfermeira obstetra só atende parto se for uma emergência e não houver um médico por perto, mas isso é inadequado, basta ver o modelo existente em países europeus onde as taxas de morbimortalidade são muito menores e a assistência é baseada no trabalho das enfermeiras obstetras, sempre com respaldo de obstetras em caso de necessidade. As enfermeiras obstetras são capacitadas para atender partos, mas como aqui não existe essa função, não podem praticar, sendo assim pode haver um problema de falta de experiência, será algo novo para elas. Em São Paulo tem um curso na USP para formar obstetrizes e em várias capitais já existem casas de parto coordenadas por enfermeiras obstetras e parteiras profissionais. http://www.ims.uerj.br/lappis/index.php/incubadora/62-casa-de-parto/249-casa-da-gestante-zilda-arns-melhor-iniciativa-institucional-segundo-a-opasoms.html 

Sul21: Em outros lugares do Brasil é fácil essa relação entre a assistência humanizada pró-parto e o universo cesarista criado pela obstetrícia sob o poder dos médicos? No Rio de Janeiro não há problemas com as casas de parto?

R.J.: Sim, as casas de parto frequentemente sofrem embargos dos conselhos de medicina e os poucos médicos que apoiam a humanização acabam sendo punidos, é uma maneira de intimidar os simpatizantes que vêm da medicina a manter os rituais, o poder, a proteção à corporação médica como dona do parto fisiológico, mas a situação de atendimento ao parto, os abusos e os problemas vêm se agravando nos últimos anos porque os médicos não querem despender o tempo necessário para acompanhar partos, somos treinados para a cirurgia e muitos estão focados exclusivamente na questão tempo=dinheiro. O que aconteceu recentemente com o Marcos Dias, no Rio de Janeiro, é inominável, mas a reação, por parte de colegas, de redes de mulheres, http://partodoprincipio.blogspot.com/2011/12/nos-tambem-apoiamos-marcos-dias.html da Rehuna, http://www.rehuna.org.br/ veio com força. Há reações a esses linchamentos morais, quando se ataca a pessoa porque não se consegue combater as ideias.
 
Sul21: Esses linchamentos morais, ameaças, como no caso do Dr. Marcos Dias, acontecem em decorrência de um parto malsucedido, de um natimorto. Como é isso em números?

R.J.: É simples, se um bebê nasce via cesariana eletiva com 36 semanas e morre dentro do hospital, considera-se uma fatalidade, essas coisas são essencialmente impunes porque estão dentro da mitologia contemporânea de veneração à tecnologia. Esse procedimento é condenado pela Organização Mundial de Saúde, mas a cesariana eletiva sem indicação clínica é muito comum no Brasil. Além de causar mortes, acarreta problemas cardiorrespiratórios em bebês, baixo peso, problemas de pega na amamentação, mas está protegida pela corporação e pelas instituições. Os números são alarmantes, há pesquisas, evidências, a cesariana eletiva sem indicação clínica já está sendo estudada como epidemia, está banalizada. Sabe-se também que 27% das mulheres reclamam de maus tratos na hora do parto dentro do hospital, isso tudo fica assim, há uma proteção da corporação e fica subentendido que aquele bebê não teria salvação. Já o caso de transferência para hospital a partir de uma casa de parto ou do domicílio da mulher, basta um caso em 10 anos, isso aconteceu comigo, para que seja aberto um processo. O parto domiciliar ou em casas de parto no Brasil, ainda que seja seguro e baseado em evidências, é atacado e a melhor forma de atacar é a perseguição ao indivíduo, que é frágil dentro do sistema. A cesariana salva vidas, sempre vai salvar, em gestações de alto risco, o que se verifica durante o pré-natal, não devem ser encaminhadas para um parto domiciliar, embora nem sempre um alto risco seja necessariamente indicação para cirurgia. Em casos de gestação gemelar, de pressão alta e diabetes, nem sempre a cesariana é uma indicação imediata, embora o acompanhamento do trabalho de parto  e o parto deva ocorrer em uma maternidade. Isso conforme as evidências. Na prática o mais comum é que uma diabética tenha sua cesariana agendada. 

Sul21: Ser médico obstetra e atender partos domiciliares é muito arriscado, então por que o Sr. entrou nisso, por que correr esse risco em vez de atender apenas em hospitais? É um bom filão no mercado, ganha-se bem atendendo esse público seleto e bem informado?

R.J: Não sei se é um bom filão, não sou um sujeito ligado em dinheiro e status, meu carro tem dez anos e como médico atendo pessoas e essa necessidade que existe, para algumas mulheres, de parir seus filhos, viver essa experiência que é de vida e não de doença. Também porque é um direito da mulher escolher o local em que se sente mais segura para parir, portanto essa é uma questão, assim como o aborto, que extrapola o debate puramente médico; é uma discussão que envolve uma compreensão mais complexa de direitos humanos reprodutivos e sexuais. Tem a ver com liberdade e autonomia das mulheres, e é por essa razão que países de larga tradição democrática da Europa, como a Inglaterra, estimulam a livre escolha do lugar de parir. Há evidências de que com um bom pré-natal, não sendo a gestante de alto risco, o parto fisiológico é tão seguro em casa quanto no hospital e além disso respeita-se o ritual familiar, vive-se com aquela família a intensidade de um momento muito especial. Do ponto de vista humano é extremamente gratificante acompanhar a dimensão familiar e emocional do parto; é uma riqueza que o modelo tradicional não oferece para a família e que muitos médicos não se interessam, mas a mim me interessa e me toca.
“É assim”, diz, acessando um vídeo de um parto que assistiu. As imagens brotam na tela e ele vai narrando a história daquela família com ele. Uma gaúcha, casada com um indiano, decide ter o bebê no RS, optam pelo hospitalar humanizado. O primeiro filho nasceu de cesariana na Índia. Ela luta, recebe massagens da doula, o marido se mantém sorridente. “Os pais ajudam muito quando se mantêm confiantes.” A doula faz massagens, conversa, acalma a parturiente. “Ela lutou, foi um parto longo, mas os batimentos cardíacos do bebê estiveram sempre bem, o estado geral dela também, muita segurança, ela foi corajosa.” O bebê vem, é uma menina, nasce rosada, o médico recebe, desenrola o cordão e entrega para a mãe imediatamente. Ele volta para a câmera e filma a felicidade dos envolvidos em um momento pessoal só deles. Sem intervenções desnecessárias, o bebê procura o seio, a mãe vai reconhecendo o filho fora da barriga pela primeira vez. O pai comemora e o menino, filho mais velho, chega para ver a irmã.
 “Olha, o menino, filho deles, muito alegre esse menino, muito bonito, ele faz aí a imitação de um  Tiranossaurus rex, ele fez questão de me mostrar como era sua imitação perfeita de tiranossauros rex e fiz questão de colocar a imagem aí na edição do vídeo, pareceu importante incorporar imagens do menino no parto da irmã, na festa íntima e particular deles”.
 Depois de tantos anos assistindo partos e vídeos que ele mesmo produz para presentear às famílias, o médico se emociona, assim como o fotógrafo e a repórter. Está plenamente compreendida por que, apesar dos dissabores, dos linchamentos morais, dos riscos para a carreira, um obstetra escolhe atender partos assim, fora do modelo tradicional e hoje, em 2012, já com evidências de segurança. 






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